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07 fev Artigos

A aplicação retroativa da nova lei de improbidade: breves apontamentos das primeiras decisões dos Tribunais sobre o tema

Por: Marina Maia

 

Publicada em 26/10/2021, a Lei Federal n. 14.230/21 alterou diversos dispositivos da Lei Federal n. 8.429/1992, a chamada Lei de Improbidade Administrativa. De fato, mais do que a alteração de redação de artigos, a nova lei traz uma nova perspectiva do que é improbidade e moralidade no desempenho de funções públicas e na utilização de recursos públicos.

 

O art. 5º da nova lei prevê que sua entrada em vigor se daria quando de sua publicação, sem, contudo, instituir regime de transição ou detalhar o tratamento a ser dado para ações ajuizadas com fundamento na lei anterior, gerando dúvidas nos administrados. 

 

Diversas disposições da nova redação aprimoram a norma e restringem os atos a um núcleo duro de condutas, que, de fato, exprimem a vontade direta do agente em violar a probidade e a moralidade pública. O modelo anterior de culpabilidade não mais subsiste, ou seja, aquele que permitia tentar configurar ato de improbidade o ato praticado meramente por imprudência, imperícia e negligência.  A partir da nova lei, somente se configurará conduta ímproba quando se comprovar ter havido dolo por parte do agente.

 

Passados quase quatro meses de vigência da lei, apesar de ainda não haver um número significativo de decisões abordando a alteração legislativa, considerando, inclusive, o recesso judiciário no mês de dezembro que ocasionou uma suspensão dos julgamentos, já é possível analisar como os Tribunais têm enfrentado a questão da vigência e aplicabilidade legal, notando-se alguma predileção – não absoluta – em aplicar retroativamente a nova norma.

 

A 4ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo proferiu acórdão, em 03/12/2021¹, justificando a aplicação retroativa da nova norma nos seguintes termos:

 

Não se olvide que por se tratar de legislação superveniente própria do direito material sancionador (art. 1º, §4º, da LF nº 8.429/92, com a redação atribuída pela LF nº 14.230/2021), suas disposições devem ser aplicadas de imediato e, inclusive, retroativamente, desde que para beneficiar o réu (art. 5º, inciso XL, da CF/889).

 

O Acórdão 2021.0000912581 da 9ª Câmara de Direito Público do TJSP seguiu o mesmo entendimento da 4ª Câmara de Direito Público, acrescentando, ainda, que a própria lei, em seu art. 1º, §4º, expressamente determina a aplicação ao sistema da improbidade dos princípios constitucionais do Direito Administrador Sancionador:

 

Art. 1º – O sistema de responsabilização por atos de improbidade administrativa tutelará a probidade na organização do Estado e no exercício de suas funções, como forma de assegurar a integridade do patrimônio público e social, nos termos desta Lei.

(…)

§ 4º Aplicam-se ao sistema da improbidade disciplinado nesta Lei os princípios constitucionais do direito administrativo sancionador.

 

Nos casos citados acima, o Tribunal analisou os méritos dos recursos de apelação interpostos e afastou a modalidade culposa do ato de improbidade, decidindo, em todos os julgados, pela não comprovação de ato doloso. 

 

O TJSP também aplicou a lei federal retroativamente ao julgar recurso de agravo de instrumento², revogando decisão do juízo que havia determinado a indisponibilidade de bens do agravante mediante o argumento de “dano presumido”, ressaltando os parágrafos 3º e 4º do art. 16 introduzidos pela Lei n. 14.230/21³ que tratam sobre a medida acautelatória.

 

Em acórdão que julgou em sede de reexame necessário o processo n. 006274-58.2018.8.19.0029, a 7ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro também endossou o entendimento da aplicação retroativa da nova lei de improbidade, por ser mais benéfica aos réus, sugerindo uma aplicação imediata mesmo aos fatos pretéritos e aos processos em curso.

 

Em recentíssimo julgado, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais reformou sentença proferida na Ação Civil Pública de Improbidade Administrativa n. 0017253-02.2012.8.13.0209 que havia condenado o requerido ao pagamento de multa civil no valor de 70 vezes a remuneração percebida à época dos fatos, decretando-lhe a perda da função pública que exercia, a suspensão de seus direitos políticos e proibindo-lhe de contratar com o Poder Público pelo prazo de 03 anos. O réu interpôs recurso de apelação, que teve seu julgamento iniciado antes da vigência da Lei n. 14.230/2021. Ainda assim, em acórdão publicado em 01/02/2022, a 4ª Câmara Cível do TJMG, em sede de julgamento estendido, deu provimento à apelação, seguindo o reposicionamento do Relator, que em seu voto registrou a natureza processual da nova lei, atribuindo-lhe aplicabilidade imediata, além de assegurada, pela Constituição, a retroatividade de lei mais benéfica. Assim, concluiu que “não há como manter a condenação por improbidade administrativa, simplesmente porque não há subsunção dos atos demonstrados com as condutas elencadas nos incisos do artigo 11 da lei federal 8.429/92, com a redação dada pela lei 14.230/2021”.

 

A Lei n. 14.230/21 também foi adotada em primeira instância pela 1ª Vara Federal do Tribunal Regional Federal da 1ª Região em decisão interlocutória proferida nos autos da Ação Civil de Improbidade Administrativa n. 0001857-61.2015.4.01.3502 para excluir determinados requeridos da relação processual. Em sede de sentença, o juízo da Vara Federal Cível e Criminal de Tabatinga-AM também aplicou a nova lei ao exigir de forma expressa a presença de elemento subjetivo para julgar os pedidos do Ministério Público Federal nos autos da Ação n. 1000189-29.2019.4.01.3201.

 

De fato, a aplicação imediata e retroativa da referida nova norma, que se enquadra na sistemática do direito administrativo sancionador, encontra amparo na própria Constituição Federal, que preceitua, em seu art. 5º, inciso XL, uma exceção à irretroatividade da norma penal, salvo para beneficiar o réu. 

 

Apesar disso, existem entendimentos em sentido divergente, tais como na 2ª Câmara de Direito Público do TJSP que proferiu julgamento unânime4 afastando a aplicação da Lei n. 14.230/21 sob o fundamento de que esta não previu sua aplicação retroativa, devendo ser aplicada somente aos processos ajuizados posteriormente à sua aplicação, consoante art. 6º da LINDB. 

 

A 15ª Câmara do TJRJ também afastou a aplicação da nova lei sob o fundamento de que, conforme o art. 14 do Código de Processo Civil, as alterações de natureza processual têm aplicabilidade imediata aos casos em tramitação, o que não se aplica aos atos processuais já praticados sob um regime anterior5.

 

Compreende-se que caberá aos Tribunais Superiores sanarem essas divergências interpretativas, trazendo a necessária estabilidade e segurança jurídica quanto à aplicação dos aprimoramentos ao microssistema de combate à corrupção promovidos pela reforma da Lei de Improbidade Administrativa.

 

 

¹Apelação Cível n° 1000554-80.2019.8.26.0638
² Agravo de Instrumento nº 2112338-48.2021.8.26.0000
³ Art. 16. Na ação por improbidade administrativa poderá ser formulado, em caráter antecedente ou incidente, pedido de indisponibilidade de bens dos réus, a fim de garantir a integral recomposição do
erário ou do acréscimo patrimonial resultante de enriquecimento ilícito. (Redação dada pela Lei nº 14.230, de 2021)
§ 3º O pedido de indisponibilidade de bens a que se refere o caput deste artigo apenas será deferido mediante a demonstração no caso concreto de perigo de dano irreparável ou de risco ao resultado útil do processo, desde que o juiz se convença da probabilidade da ocorrência dos atos descritos na petição inicial com fundamento nos respectivos elementos de instrução, após a oitiva do réu em 5 (cinco) dias.
§ 4º A indisponibilidade de bens poderá ser decretada sem a oitiva prévia do réu, sempre que o contraditório prévio puder comprovadamente frustrar a efetividade da medida ou houver outras circunstâncias que recomendem a proteção liminar, não podendo a urgência ser presumida.

4 Apelação n. 0006089-24.2008.8.26.0272

5 Agravo de Instrumento nº 0049469-78.2021.8.19.0000

 

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