A nova metodologia de reequilíbrio dos contratos de concessões de rodovias federais determinada pelo TCU e seus impactos
Por Camila Lacerda
O Tribunal de Contas da União, recentemente, concluiu mais um julgamento importante para o setor de concessões de rodovias no Brasil, com impactos para concessionárias, usuários, sociedade e ANTT.
Por meio do Acórdão n. 2.264/2021-Plenário, o TCU determinou, por cinco votos a três, que a Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) passe a prever em seus normativos que o desconto na tarifa de pedágio, na hipótese de atrasos e inexecuções de investimentos previstos nos planos de negócios dos contratos de concessão de rodovia, seja aplicado imediatamente, de forma concentrada e pelo período de um ano, após a identificação do atraso ou inexecução.
Atualmente, a ANTT aplica o desconto tarifário, diluindo os seus efeitos no fluxo de caixa da concessão, pelo prazo remanescente do contrato, sendo essa uma prática que, além de prevista nos contratos de concessão, vem sendo adotada pela ANTT há mais de 20 anos e está retratada na Resolução n. 5.850/2019, que estabelece os procedimentos para determinação de reequilíbrio econômico-financeiro dos contratos de concessão de rodovias.
A aplicação do desconto tarifário de forma concentrada vem sendo discutida desde 2018 no âmbito do TCU, em processo de fiscalização do Contrato de Concessão da BR-101/ES/BA. Nesse processo, o TCU entendeu que os atrasos e inexecuções contratuais de responsabilidade da concessionária não estariam sendo compensados pela ANTT por mecanismos regulatórios aptos a recompor o equilíbrio econômico-financeiros dos contratos, via desconto tarifário, o que estaria gerando prejuízos aos usuários. Por isso, o TCU determinou que o desconto tarifário fosse realizado pela ANTT imediatamente, de forma concentrada e pelo período de um ano, ao invés de diluir seus efeitos pelo prazo remanescente dos contratos de concessão, como até então vinha sendo feito (Acórdão 1.447/2018-Plenário).
Embora a determinação tenha sido questionada pela ANTT em sede de recurso, com a participação da Associação Brasileira de Concessionárias de Rodovias (ABCR), como amicus curiae, demonstrando os efeitos nocivos da nova metodologia de reequilíbrio, ela foi mantida no Acórdão n. 2.264/2021-Plenário.
A decisão, desde então, tem sido objeto de críticas e de preocupação de todos os agentes do setor, pois, embora aparente ser mais benéfica aos usuários, na prática, é prejudicial ao interesse público e poderá inviabilizar a continuidade dos contratos de concessão que possuem planos de negócios, trazendo grande insegurança jurídica em um momento no qual o país necessita cada vez mais atrair investimentos para desenvolver seus projetos de infraestrutura.
Sob o ponto de vista dos usuários, a nova metodologia ocasiona um indesejável efeito “sanfona”, já que haverá uma redução tarifária de curto prazo e momentânea, no caso de não execução dos investimentos previstos, seguida de uma expressiva elevação da tarifa após a realização dos respectivos investimentos pelas concessionárias.
Uma tarifa de pedágio que anualmente pode sofrer expressivas variações impacta também a capacidade de planejamento e previsibilidade dos agentes econômicos, pois afeta a precificação de diversos bens e serviços que dependem direta ou indiretamente do modal rodoviário, a exemplo dos preços da gasolina e frente, impacto na logística e transporte de mercadorias, entre outros. Também por essa razão, protestos e paralisações de caminhoneiros ocorrem e impactam tanto a sociedade.
Já as concessionárias que possuem planos de negócios poderão ter seus contratos desequilibrados, especialmente sob o ponto de vista financeiro, com o comprometimento da saúde financeira e sustentabilidade do projeto devido a um decréscimo substancial das receitas e elevação de despesas não cobertas por outras fontes, o que pode levar ao vencimento antecipado de dívidas e, em outros casos mais graves, à devolução das concessões sem a execução das obras e investimentos pretendidos.
As consequências práticas e efeitos da nova metodologia de reequilíbrio merecem a devida reflexão e consideração, sobretudo em razão da segurança jurídica que se espera das decisões administrativas, especialmente das determinações do TCU.
Os artigos 20 e 21 da LINDB reforçam a importância da segurança jurídica e eficiência na aplicação do direito público, ao exigir, respectivamente, a completa e adequada motivação das decisões administrativas, com a avaliação de todas as suas consequências práticas, bem como a responsabilidade e racionalidade das decisões do controlador ao invalidar atos, contratos, ajustes, processos ou normas administrativas. Por sua vez, o artigo 24 da LINDB dispõe sobre a necessidade de serem observadas e preservadas as orientações gerais vigentes à época da prática dos atos administrativos, deixando clara a impossibilidade de retroatividade de normas jurídicas novas, não aplicáveis à época da prática do ato.
Outro aspecto relevante se refere aos limites da atuação do TCU no âmbito das agências reguladoras – o chamado controle de segunda ordem. Trata-se de conceito formado pela jurisprudência do tribunal[1], segundo a qual o TCU não pode afastar as competências originárias e finalísticas das agências reguladoras, nem a elas se sobrepor, substituindo o órgão regulador no papel de gestor do contrato de concessão e definidor das políticas regulatórias e setoriais.
Na sessão de julgamento do Acórdão n. 2.264/2021-Plenário, a representante do Ministério Público de Contas e alguns ministros do TCU destacaram que a nova metodologia de reequilíbrio imposta pela Corte de Contas, além de contrária à resolução da ANTT sobre o tema e a uma prática regulatória vigente há longa data, se afasta do controle de segunda ordem que deve ser exercido pela Corte de Contas e não preserva a autonomia funcional da ANTT em sua atividade-fim. Conforme destacado pela Dra. Cristina Machado, Procuradora-Geral do Ministério Público de Contas, “a opção por determinado modelo regulatório, ou metodologia de cálculo para aplicação aos contratos de concessão, insere-se na esfera do poder de escolha das agências, que podem dispor de diferentes alternativas para exercer suas competências finalísticas, ou mesmo para corrigir desvios identificados no âmbito do controle externo”[2].
Não se pode negar que o TCU exerce um relevante papel para a sociedade e tem muito a contribuir com a atividade administrativa, auxiliando gestores e agências reguladoras na recomendação de melhores práticas e aprimoramentos, especialmente em suas auditorias operacionais e de performance. Mais do que um órgão de controle, o TCU é um importante agente para o desenvolvimento nacional.
Apesar disso, é forçoso que se reconheça os limites de atuação e competências do Tribunal, respeitando a esfera de atuação de outras entidades que, assim como o TCU, também possuem papéis relevantes para o aprimoramento da gestão pública e obtenção de melhores resultados, a exemplo das agências reguladoras.
A despeito da autonomia e independência para conduzir as matérias regulatórias sob sua competência, a ANTT terá o prazo de 180 dias para modificar suas normas e regulamentar a nova metodologia de reequilíbrio imposta pelo TCU, caso a decisão não seja revista pelo Tribunal ou Poder Judiciário.
[1] Nesse sentido os Acórdãos 1.703/2004-Plenário (paradigma em matéria de regulação no TCU), 2.927/2011-Plenário, 715/2008-Plenário, 2241/2013-Plenário, 2302/2012-Plenário, 1313/2010-Plenário, 402/2013-Plenário e 2314/2014-Plenário.
[2] Conforme pesquisa empírica realizada pelo Observatório do Controle da Administração Pública da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, o TCU tem exercido intenso controle das atividades fim das agências reguladoras por meio de determinações e recomendações (82% dos 757 Acórdãos analisados no período de 2014 a 2017), que, na maioria das vezes, são acatadas pelas agências. Especificamente em relação à ANTT, o estudo observou que o TCU direcionou a essa Agência o maior número de Acórdãos com atos de comando, se comparada com as demais agências de infraestrutura (38% do total analisado – 251 Acórdãos). Além disso, dos atos de comando emitidos à ANTT, praticamente a integralidade recaiu sobre atividades fim da Agência e 75% desses foram determinações. (O controle das Agências Reguladoras pelo Tribunal de Contas da União. São Paulo, 2019).